Hoje começa o Festival de Angoulême, o maior do gênero no mundo quando o assunto é exclusivamente quadrinhos. No ano passado, estive por lá em decorrência de uma viagem por motivos profissionais e familiares que realizei à Europa, acompanhado de minha namorada, que planejou quase todo nosso itinerário. Numa janela entre um compromisso e outro tornou possível conhecer o evento e a cidade.
Por isso, a intenção deste texto é contar um pouco da experiência de participar do festival. As ruas, a cidade, o público, os artistas... Tudo sob um olhar descompromissado, sem obrigações com jornais, editoras ou blogs.
O texto foi divido em três partes, de acordo com as datas em que lá estive: 29, 30 e 31 de janeiro. E você confere todas abaixo.
Além das fotos que você verá abaixo, há muitas outras, na minha conta do Flickr, que podem ser conferidas aqui.
Então, que a viagem comece.
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Angoulême, 29 de janeiro de 2010
Chegamos a Angoulême pela manhã e o festival começara no dia anterior. Por isso, perdi alguns eventos interessantes, como o primeiro Encontro Internacional, com Sempé, um debate sobre quadrinhos interativos no Auditório da Cité e uma conferência no Pavilhão Jovens Talentos sobre o trabalho de tradução.
Nas bilheterias, os visitantes trocavam o ingresso comprado antecipadamente por uma pulseira de identificação ou compravam uma na hora. Eram três pontos de venda: um próximo à Praça New York, outro no Campo de Marte e o último no Edifício Castro, sendo que este não realizava a troca, apenas vendia ingressos. E não é fácil descobrir isso, pois há pouquíssima informação à vista nas ruas, apenas indicações de direção.
As pulseiras eram feitas de um material plástico, em cores bastante chamativas, como as usadas em blocos carnavalescos ou rodeios. A que valia para os quatro dias do evento era amarelo-fosforescente, mas também azuis e laranjas. Em qualquer um dos casos, depois de colocadas, elas só saíam do punho se fossem rasgadas.
Junto com a pulseira era entregue uma brochura com informações sobre o festival e cada um dos eventos, além de uma grade de horário bem detalhada e um mapa muito ruim de se localizar. Também era possível encontrar essa grade em pontos estratégicos.
Já de pulseira, seguimos para o local mais próximo, O Novo Mundo, uma enorme tenda montada na Praça New York que abrigava um dos dois Espaços das Editoras e o Espaço dos Quadrinhos Alternativos.
Lá dentro, ambos se confundiam. O que existia na verdade era um estande grande da L’Association (editora de perfil alternativo, fundada em 1990, com publicações importantes no portfólio, como Persépolis, de Marjane Satrapi) e um monte de estandes pequenos de companhias menores.
Era possível encontrar uma quantidade absurda de títulos e autores por metro quadrado. Crianças, adolescentes, adultos, idosos, homossexuais, heterossexuais, pornógrafos, fetichistas, estudiosos, intelectuais... Havia espaço para todo tipo de público.
Para uma pessoa com pouco contato com o universo dos quadrinhos europeus, como eu, entrar num ambiente como este é um misto de vergonha e deslumbramento.
Vergonha por desconhecer cerca de 90% dos álbuns e/ou autores; e deslumbramento por descobrir novos traços, histórias e estilos a cada passo. De um lado, Frank Santoro lutava para entender se um senhor queria seu desenho/autógrafo no formato paisagem ou retrato; do outro, uma pequena multidão se aglomerava para ver Chongrui Nie, um dos autores de Le juge Bao, desenhar. Nomes que, até então, eu nunca tinha ouvido falar...
Ah, e havia também, no fundo, um pequeno café, próximo a um bueiro. O cheiro era horrível...
Em frente a Rua Hergé estava o Espace Fnac - SNCF Selecion Officielle, uma tenda na Praça St. Martial em que os 58 álbuns concorrendo ao prêmio Fauve Fnac-SNFC (o prêmio do público) podiam ser lidos. A entrada era gratuita.
No mínimo dois álbuns de cada título estavam disponíveis no local: um portátil, colado a uma placa de acrílico transparente (para diferenciá-los), e outro fixo a um totem. Uma boa quantidade de puffs (confortabilíssimos) e cadeiras estavam à disposição dos leitores, assim como seis computadores para o público votar no prêmio ali mesmo. Eu me diverti horrores lendo Dungeon Quest, do sul-africano Joe Daly (votei nele), e quase todo Misery Loves Comedy, do Ivan Brunetti.
Outra atração do espaço eram os 20 minutos de bate-papos com alguns dos autores (às vezes, só o desenhistas; outras, só o escritor; e até ambos) dos álbuns da seleção do prêmio do público. Isso rolava a cada 45 minutos, mais ou menos.
Enquanto lia, assisti de canto de olho o Matthieu Bonhomme, desenhista do L’Esprit perdu (que ganhou o prêmio internacional em 2010) falar sobre seu processo criativo e seu método de trabalho.
Almoçar em Angoulême é caro, como em qualquer outro lugar na França. Quem tenta fugir do tradicional sanduíche na baguete paga mais ainda. Os lanches custavam uma média de 5 euros, enquanto o prato do dia nos restaurantes não saía por menos de 8 euros.
Tinha também o salvador da pátria, o kebab, semelhantes ao popular “sanduíche grego” no Brasil. Deliciosos e feitos na hora, com molhos diversos (o de hortelã era maravilhoso), salada, muita carne e acompanhado de uma bela porção de batatas fritas, custavam 4,50 euros. Embora fossem mais baratos e bem mais gostosos, a procura por eles era menor.
Filas enormes nas barracas de baguetes (quase todas na frente de alguma atração do festival) e restaurantes cheios contrastavam com casas de kebab relativamente vazias.
Em todos os lugares, a bebida não saía por menos de 2 euros, com exceção da água, tradicionalmente oferecida (1 litro) como cortesia pelos restaurantes franceses.
O Auditório do Conservatório era palco de diferentes atividades. Em Os Encontros desenhados, autores eram convidados a emular seu ateliê pessoal e trabalhar diante do público em um de seus projetos atuais. Já em Os Encontros - Quadrinhos e romance noir, profissionais debatiam suas adaptações deste gênero literário. E em Os Encontros - Hergé acontecia um debate sobre a obra do criador de Tintim. De todos esses, só consegui comparecer ao último.
O evento em questão aconteceu às 13h30min. Tratava da relação entre Hergé, Hitchcock e Agatha Christie, e tinha como participantes o escritor Benoît Peeters, autor da biografia de Hergé, entre outros livros e quadrinhos (ele aparece no documentário Tintin et Moi, do dinamarquês Anders Østergaard), e o crítico literário François Rivière.
Também estava presente um mediador que se apresentou logo no início do debate e fugiu rapidinho assim que tudo terminou. Como cheguei atrasado, perdi o nome dele. Outro encontro aconteceria no dia seguinte, no mesmo horário, e abordaria as origens da “linha clara”, termo que designa o estilo de desenho empregado por Hergé.
O debate que presenciei durou cerca de uma hora e meia e fazia uma aproximação da obra dos três autores, tratando, em especial, da maneira com que cada um deles cria o suspense. Com atenção maior a Hergé, o que, dado o caráter do festival, era inevitável.
A maior parte das falas foi do Benoît, que se mostrou muito simpático e respondeu longamente as perguntas do público, quando o debate foi aberto. Disse que As joias da Castafiore era o ápice da criação do suspense nas obras de Hergé. O mediador também falou bastante e parecia conhecer bem a obra de Hitchcock. Já o François limitava-se a responder secamente tudo o que lhe era endereçado.
Por completa falta de experiência e por um bocado de sono, resultado de uma longa viagem sem dormir, não gravei o debate e nem fiz anotações importantes. Mas o ponto que lembro mais claramente tratava de como os três eram “simplificadores”, um termo usado pelo Truffaut em sua célebre entrevista com Hitchcock para designar autores que eram capazes de criar grandes tramas sem se utilizar recursos complicados tanto na forma, quanto no conteúdo.
Era um contraponto ao que Truffaut chamava de autores “complicadores”. Acredito que o David Lynch seja um bom exemplo deste segundo grupo.
Mas é bom deixar claro que esses termos não foram usados como elogio ou crítica negativa, apenas para descrever os autores.
Ao lado do Conservatório, próximo à Praça Henri Dunart, aconteciam três exposições. Blutch e Fabio Viscogliosi tinham seus trabalhos, a grande maioria “extra quadrinhos”, expostos. Muitos rascunhos, algumas esculturas (no caso do primeiro) e um ou outro original de trabalhos publicados. A terceira era uma mostra de caráter historiográfico sobre desenhos de humor. Do século XIX a Chris Ware.
Todas eram muito boas. Mas, no caso das exposições focadas nos artistas, faltou um pouco de contextualização dos trabalhos. Soltas demais, não apresentavam data de realização das obras ou qualquer informação minimamente explicativa, além de um parco texto de apresentação no início.
Eram artistas apresentando suas obras em um salão de maneira bastante tradicional, quase como numa galeria de arte à espera de um possível comprador. Se você já era familiar ao trabalho deles, ótimo; se não, azar seu...
A mostra de desenhos de humor era diferente. Muitas obras, resultado de um excelente trabalho de pesquisa, com textos bem elaborados e informativos, além de, como era de se esperar, extremamente engraçada.
O único problema, comum às três exposições, era o espaço escolhido para realizá-las. Uma ala inteira de um edifício antigo extremamente apertado, com muitas salas ligadas por corredores estreitíssimos e de difícil circulação.
Estranhamente, as imagens que acompanham este texto parecem mostrar exatamente o contrário!
No Auditório da Cité aconteceram dois eventos interessantes focando os quadrinhos argentinos. O primeiro foi sobre o artista argentino Copi, que morou muitos anos em Paris. Logo em seguida, um debate sobre as HQs contemporâneas de nossos hermanos. Acabei perdendo ambos enquanto visitava as exposições do Blutch e demais.
De qualquer maneira, vale registrar o fato. Além do mais, é bastante curioso ter de ir até Angoulême, do outro lado do Oceano Atlântico, para ver dois debates sobre quadrinhos de um país com o qual o Brasil faz fronteira. Felizmente, esse cenário parece estar mudando.
No Campo de Marte estava O Mundo dos Balões, com o segundo Espaço das Editoras. Nele era possível entender o que realmente aconteceu no final de 2009, quando a prefeitura ameaçou cancelar o festival.
Era um lugar enorme, com estandes imensos, como os que as grandes editoras brasileiras montam nas bienais do livro no Brasil. O público, significativamente mais jovem, se amontoava em maior número nas filas de “autógrafo”.
E a palavra está entre aspas porque não é uma simples assinatura: era um desenho completo, passado a limpo e, muitas vezes, até colorido com aquarela. Uma arte inteiramente original.
Só que para entrar nesse espaço era necessário mostrar a pulseira-ingresso, os livros não tinham desconto algum e era proibido pedir “autógrafo” em qualquer coisa a não ser a obra do autor (pequenos cartazes avisavam isso, mas esqueci de fotografá-los).
Ou seja, você só entra lá para comprar um álbum se realmente gostar do autor e quiser o “autógrafo” ou se pretende revender os livros autografados na internet.
O motivo da briga da prefeitura era esse. Ela montava as tendas, modificava toda a estrutura de transporte da cidade, desviava pessoal de função e pagava hora extra (já que o festival se estende por todo o final de semana) para que as editoras vendessem os mesmos livros que você poderia encontrar em qualquer livraria por um preço idêntico. E ainda tendo de pagar para entrar!
Para a prefeitura de Angoulême, isso não parecia fazer muito sentido, ainda mais em tempos de crise econômica.
Existiram também, obviamente, interesses políticos mascarados, que não conheço bem o suficiente para dar nome aos bois, mas o fator econômico me pareceu relevante o suficiente para questionar a maneira com que as grandes editoras participam do evento. Elas pagam o aluguel do estande e mais nada. Uma quantia mínima, certamente, perto dos lucros que têm.
Quem chega, como eu, achando que vai comprar um monte de quadrinhos baratos se decepciona. Sendo brasileiro, então... Entre, por exemplo, pagar € 27,55 (que era o preço médio da maioria das novidades) no Gênesis do Robert Crumb ou gastar R$ 34,93 numa promoção de lançamento (que se estendeu por bons meses em diversos sites), vale mais a pena comprar por aqui mesmo.
Já os álbuns que demorarão anos para ser lançados no Brasil, se é que um dia sairão por aqui, autógrafo à parte, é preferível adquiri-los em livrarias especializadas de Paris, com algum desconto.
Como para chegar a Angoulême você precisa descer de avião em Paris e depois pegar um TGV, vale a pena ter isso em mente e separar uns dois dias para visitar a capital francesa.
Nesse ponto, o festival foi bastante frustrante. “Não vale a pena comprar quadrinhos na Europa. Tem de ter muito dinheiro! Como essas pessoas compram tanta coisa? A fila do autógrafo está enorme e todo mundo está com todos os livros do cara na sacola! Devem ter gastado mais 100 euros em obras de um único autor e ainda são duas da tarde do segundo dia!”. Esses eram pensamentos constantes.
Na Praça do Mercado estava O Mundo dos Colecionadores, espaço dedicado à venda de todo tipo de bugiganga que se possa colecionar. Bonequinhos, estátuas, livros raros ou só antigos, pôsteres... Tinha de tudo, até material de desenho (bem barato por sinal - as raras canetas PITT, da Faber-Castell que por aqui não saem por menos de 12 reais, lá estavam por 2 euros, e em toda variedade de cor). A tentação era enorme.
Curiosidade: a empresa responsável pelo licenciamento dos produtos do Tintim não estava lá dentro, embora muitos de seus produtos estivessem à venda em outros estandes. Ela estava no espaço Le Bouveau Monde, junto das editoras alternativas. Era um estande relativamente grande, posicionado em uma esquina, o que aumentava o espaço para exposição de seus produtos.
Na Sala Nemo, do Edifício Castro, estava marcada para as 20h30min uma sessão de Valsa com Bashir com a presença do diretor Ari Folman. Era preciso comprar um ingresso separado (2 euros), sem necessidade de apresentar a pulseira.
Chegamos às 19h, imaginando longas filas, o que não aconteceu. A porta da sala foi aberta uma hora depois e a sessão começou quase às 21h. Esperaram todos os lugares serem preenchidos para o filme começar.
Pouco antes, o diretor entrou, se apresentou e falou que após a sessão voltaria. Já estava cansado de ver seu filme e esperaria lá fora.
O filme foi exibido com áudio original, em hebraico, e com legendas em francês, tudo ao som de fortíssimas assoadas de nariz por parte dos franceses.
Aparentemente, assoar o nariz é uma coisa extremamente comum e corriqueira entre eles. Não existe um “aqui não pode, porque atrapalha os outros”. Toda hora é hora.
Sem contar que as diversas camadas de roupas, ao serem retiradas, revelavam um odor extremamente peculiar de suor. Não foi uma sessão das melhores.
As luzes se acenderam e o diretor entrou ao som de longos (e merecidos) aplausos. Falou brevemente sobre aspectos gerais do filme e abriu espaço para perguntas. A maioria delas queria saber sobre o processo de produção: a gravação e seleção dos depoimentos, a captação de verba, a escolha pela animação em Flash...
Uma ou outra pergunta sobre a montagem, principalmente pela escolha em colocar imagens “reais” no fim do longa-metragem. Mudando um pouco a linha geral dos assuntos, perguntei:
– Ari, gostaria que você falasse um pouco sobre a versão em quadrinhos do filme e sobre a decisão de fazê-la.
– Bom, o motivo de termos feito essa versão foi porque podíamos fazê-la. Nunca nos passou pela cabeça transformar o filme em quadrinhos até uma editora de Nova York nos pedir a adaptação. E não foi difícil. A arte já estava praticamente pronta. O desafio foi adaptar a enorme quantidade de diálogos para texto sem torná-lo enfadonho.
– E você gostou do resultado? – uma outra pessoa perguntou.
– De algumas versões, eu gosto; outras, odeio. Por isso, costumo evitá-las. A de Israel, odeio. A única que acho realmente boa é a americana.
– E a francesa? – perguntou um sujeito na primeira fila.
– A francesa não é ruim, não.
O debate foi encerrado pouco antes das 23 horas e voltamos para a estação de trem, à espera de nossa carona.
2 comentários:
Excelente cobertura. Muito bom mesmo.
Realmente deve desapontar ir a uma festival de quadrinhos e não poder comprar quadrinhos. Concordo que não há muito sentido em vender os álbuns no festival com o preço normal.
A sessão de "Valsa com Bashir" não deve ter sido fácil. hehehe
De qualquer forma, acho que valeu pela conversa com o diretor.
Muito interessante. Belo texto.
É até possível comprar, só depende do tamanho do seu orçamento! Rárárá... Mas é uma situação bastante frustrante, de fato...
Abraço
Douglas
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