27 janeiro 2011

Um brasileiro em Angoulême - Parte 3

Por Douglas Lambert

Angoulême, 31 de janeiro de 2010


O último dia do festival é também o mais curto. As atividades começavam às 10h e se estendiam até às 18h. Além da cerimônia de entrega dos prêmios, às 16h30min, no teatro da cidade, só os Encontros Internacionais prometiam algo.

Joe Sacco


Para mim, o encontro com Joe Sacco era o mais esperado, depois do com Robert Crumb (não conto o com Sempé, para não ficar triste). Imaginava muita gente na porta, filas enormes, pessoas interessadas e até alguns jornalistas.

Os cartazes de divulgação de Gaza: 1953 (no original, Footnotes in Gaza e, no Brasil, Notas sobre Gaza), álbum que o autor estava lançando no evento, faziam grande estardalhaço para a presença dele.

Por isso, esperava por algo que, no final das contas, não aconteceu, pelo menos não nos moldes com que eu aguardava - e isso foi muito bom.

Pouquíssimas pessoas compareceram (a hora e meia de antecedência com que cheguei ao Edifício Castro não se justificou) a um debate intimista e com um Joe Sacco extremamente simpático, muito eloquente e interessado em falar com o público.

Joe chegou cedo e ficou algum tempo conversando com o público do lado de fora, esperando a autorização para entrar na sala. Ao assumir seu lugar à frente da mesa, ficou aguardando com um ar de quem dominava perfeitamente esse tipo de situação.

Afinal, jornalista que é, certamente está mais do que acostumado a interagir com outras pessoas do que artistas tímidos, melancólicos ou só ranzinzas, até.

A conversa começou, como é o costume dos encontros, com um histórico da carreira do autor. Formado em jornalismo, se desencantou com a profissão ao se ver empregado num jornal de pequena circulação nos Estados Unidos. Lá, com pouquíssima liberdade para escolher suas próprias pautas, era obrigado a escrever matérias compradas por anunciantes.

Desistiu da profissão e mudou-se para a Europa após algum tempo. Em determinado momento, estava em Berlin, fazendo pôsteres e arte de discos para bandas locais. Mas, cansado da cobertura parcial e extremamente simplista que recebia dos conflitos no Oriente Médio pela imprensa norte-americana, em especial, decidiu partir rumo à Palestina, em busca de uma visão mais completa dos fatos.

Os resquícios de sua formação e a atual ligação com as artes plásticas o fizeram pensar em criar algo a partir dessa experiência. Daí, surgiu o álbum Palestina.

Durante o processo de criação das páginas de seu primeiro trabalho, ficou clara para ele a necessidade de ir à Bósnia cobrir a guerra por lá de maneira semelhante ao que fizera no Oriente Médio. E assim por diante...

Confesso: não sabia bem o que esperar dele. Até então, tinha lido só algumas páginas de Palestina e, na época, não gostei muito, principalmente por achar uma coisa exibicionista demais. Um americano indo até lá para mostrar a realidade local e se colocando dentro da história?

Isso me parecia gonzo demais. Um quase “Hunter Thompson em quadrinhos”. De certa forma, eu estava certo, e isso é bom.

Quando questionado sobre sua presença dentro de seus trabalhos e o seu papel duplo de narrador e personagem, uma das primeiras coisas que Sacco fez questão de colocar foi sua admiração pela obra do Dr. Gonzo.

Disse que, por mais que você busque, não encontrará melhor trabalho jornalístico de cobertura das eleições norte-americanas que Fear and Loathing: On the Campaing Trail 72. Sobre a obra, ainda não publicada no Brasil (pelo que sei), vale a pena destacar alguns pontos.

Hunter Thompson, a pedido da revista Rolling Stones, cobriu, de dezembro de 1971 a dezembro de 1972, toda a campanha presidencial norte-americana. Mas seu papel não foi o de mero espectador/repórter: ele foi além.

Seu texto era direto, abusado e extremamente crítico. Muito diferente do jornalismo literário criado por Truman Capote em A Sangue Frio, em que o jornalista faz as vezes de Deus (onisciente e invisível), o seu jornalismo gonzo tinha como principal característica a sua presença constante vendo, observando.

Ele era tão parte da notícia quanto a notícia em si; e sua atuação mudou, pelo menos por algum tempo, a maneira com que o jornalismo tratava a política. Ficou tão famoso que, posteriormente, acabou sendo prejudicado por isso.

Uma fonte rápida de informação sobre sua obra pode ser encontrada no documentário Gonzo: The Life and Work of Dr. Hunter S. Thompson.

O caso de Joe Sacco é semelhante. Como Thompson, sua função dentro do texto/quadrinho não é de mero exibicionismo, mas de “verdade metodológica”. Ele não está lá para parecer descolado, inteligente ou mesmo bobo (como ele se retrata na maioria das vezes).

Está lá para dizer “Isso tudo não é mentira. Eu estava lá. Eu vi!”. Entender isso mudou de tal forma minha relação com a obra de ambos, que hoje ambos estão no coração do meu projeto (em construção) de mestrado.

Ao tratar de Notas sobre Gaza disse o que já havia dito em várias entrevistas até então e que certamente foram repetidas no Brasil na ocasião do lançamento.

Joe Sacco demorou sete anos para finalizar a obra - num processo de, pelo menos, dois anos exclusivamente voltados para pesquisa. Havia começado a se interessar pelo assunto ao deparar com uma nota de rodapé em um relatório antigo da ONU sobre a situação da Palestina.


Disse também que foi muito mais difícil desenhá-lo, por ser seu primeiro trabalho histórico, quase etnográfico, e menos jornalístico. As cenas que reconstroem a Faixa de Gaza dos anos 50, por exemplo, foram baseadas em fotografias antigas e descrições.

O autor admite que tinha ciência de haver uma chance grande de ter errado ou que de pintarem contradições nos relatos que colheu, mas que, na medida do possível, tentou deixar isso também à vista do leitor - há todo um trecho do livro que reconta a história expondo possíveis contradições no relato das testemunhas.

Quanto ao seu trabalho como jornalista, disse que outros colegas de profissão costumam invejá-lo, por ter anos para escrever uma única matéria. No entanto, apontou que isso também pode ser um problema.

Afinal, anos escrevendo e desenhando uma única matéria podem transformar seu tema, a ponto de deixá-lo completamente desatualizado. Assim, disse ter tido sorte de com Notas, pois a história já é antiga e não havia mais como ela mudar.

A certa altura do debate, perguntei sobre o Haiti, que na época havia acabado de ser completamente destruído pelo terremoto:

– Joe, você começou seu trabalho com quadrinhos jornalísticos em Palestina por estar descontente com a cobertura sobre o conflito entre palestinos e israelenses. Qual a sua visão sobre o que aconteceu recentemente no Haiti, de acordo com noticiário recente.

Ele respondeu mais ou menos assim:

– Infelizmente, não pude acompanhar da maneira como gostaria essa tragédia no Haiti, pois estou há algumas semanas viajando em turnê de lançamento do livro. No entanto, me parece que a situação por lá é mais ligada a uma questão de pobreza extrema do que resultado de um desastre natural. Nesse sentido, acho que questões ligadas a conflitos e guerras são mais difíceis de serem cobertas do que desastres naturais. Afinal, não existe um culpado humano e o jornalismo pode mostrar-se mais humano”.

– E também mais cínico, pensei.

Terminado o debate, fui até a mesa conversar um pouco com ele. Mais pessoas tiveram a mesma ideia e Sacco atendeu um a um. Chegou até a me passar seu e-mail, que guardo como um autógrafo em meu caderno de campo.

Musée de la BD



Esta, certamente, é a parte mais triste de toda a viagem. Sinto até vergonha de contar... Não visitei o museu!

Assim que saímos do encontro com Joe Sacco, almoçamos e fomos ao Musée de la BD. Instalado em uma antiga fábrica de papel, o recém-reinaugurado e reformado espaço é lindo, amplo, com enormes sofás para o visitante ler qualquer um dos quadrinhos disponíveis para consulta e com uma meia-luz que convida a pessoa cansada a um maravilhoso cochilo. E eu o fiz.

Mas não fui o único. Muita gente também dormiu. Meu consolo foi comprar, mais tarde, o enorme La Bande Depenei: Son Histoire et son Maitres, livro editado pelo próprio museu, que conta a história do quadrinho francês e belga, além de falar um pouco sobre os comics norte-americanos.


Musée Municial e Hôtel de Ville


O Museu Municipal de Angoulême é muito bonito, um prédio antigo que estava em reforma na época, e possui uma variedade enorme de peças em exposição.

De história natural (esqueletos de animais antigos encontrados em Angoulême) à arte contemporânea, lá estava localizada a exposição Quando o Louvre convida as Histórias em Quadrinhos. “Uma exposição histórica”, pensei. Nada disso.

A exposição trazia obras dos artistas Nicolas de Crécy, Marc-Antoine Mathieu, Éric Liberge e Bernar Yslaire, que tinham como plano de fundo o Museu do Louvre.

Na parede, as obras eram expostas exatamente como eram encontradas nos álbuns, ou seja, caso já conhecesse esses trabalhos, você ia até lá para ver exatamente a mesma coisa. Nem um balão a mais ou a menos. O que salvava eram as televisões que mostravam uma animação com todo o processo de criação das páginas. Do esboço a lápis à finalização no Photoshop.


No topo da torre do Hôtel de Ville, o antigo castelo do “feudo” de Angoulême (hoje sede da Prefeitura), depois de subir uma escadaria gigante e de uma só “mão” (uma pessoa tinha de avisar quando alguém descia, para que não houvesse um encontro no meio do caminho), o visitante encontrava a mesma situação.

A exposição La Saison des Flèches trazia as mesmas páginas do quadrinho. Esta, no entanto, não possuía as televisões com a animação, mas contava com a presença de um dos autores, Samuel Stento. Um pouco frustrante...

Mas o Hôtel guardava uma surpresa. Depois que anoitecia, projeções eram feitas em suas paredes. Fauve, o mascote do festival, escalava pilhas de livros, pulava de janela em janela, subia em árvores e escorregava na ponta de um lápis. Muito bonitinho. Isso vimos no sábado, dia 30.

Como no domingo, último dia, tudo fecha mais cedo (ainda de dia), vale a pena se programar para não deixar essa atração para a última hora.

Teatro


Estava marcada para as 16h30min a entrega dos diversos prêmios. Meia hora antes, em direção ao teatro onde aconteceria a premiação. Chegamos pouco antes e encontramos o local lotado e de portas fechadas. Ninguém entra, ninguém sai.

Embora seja um evento marcado no calendário distribuído ao público, esta atividade não é para os fãs. Basicamente, só jornalistas e artistas entraram. O restante ficou de fora, sem receber qualquer notícia.

Eu imaginava que fosse acontecer um evento grandioso, com transmissão simultânea em telões espalhados pela cidade para quem não conseguira entrar, como eu.

Nada. Nem a rádio do festival, que anunciava em grandes caixas de som as atrações para a cidade toda, transmitiu. Fiquei sabendo do resultado somente no dia seguinte, consultado pela internet.

Musée du Papier


Logo em frente ao Musée de la BD fica o Musée du Papier (o Museu do Papel).

Lá, eu esperava encontrar algo voltado à história da impressão na França. Angoulême, nos Séculos 18 e no início do 19, foi um dos, se não o mais, importantes pólos franceses de impressão de livros.

Parte dessa história é contata em Ilusões Perdidas, do Balzac, e era por isso que eu esperava. O que encontrei, na verdade, foi um museu dedicado à história de uma fábrica de papel para fumo que estava instalada naquele lugar.

No mínimo, inusitado.

No entanto, por mais que fosse, em certo grau, algo interessante, o local limitava-se a uma sala de pouco mais de 50 m² no subsolo.

No piso superior, na outra sala que integrava o museu, estava a exposição de quadrinhos russos, muitíssimo mais interessante que qualquer outra até então, pois não apresentava uma cópia das página publicadas, mas sim diversos originais.

Alguns trabalhos eram baseados em fotografias de esculturas de massinha que formavam pequenos quadrinhos, quase tiras, pornográficas. Uma professora que leva os meninos ao zoológico para ver animaizinhos transando, um casal que faz sexo em público. Coisas do tipo.

Além disso, também havia obras feitas no local, colagens e grafites feitos na parede do museu...


Mas, como nada é perfeito, a mostra também sofria por uma curadoria extremamente mal feita. Embora muita coisa fosse apresentada sem balões (se eles existiam naqueles trabalhos, era impossível saber), outras eram mostradas com o texto original, em russo. E algumas ainda estavam sem identificação de autor ou data.

Grande parte dos artistas, ou dos responsáveis russos pela exposição, não estava nem aí para nada e ficava conversando na porta, fumando cigarros. Ainda assim, era uma mostra das mais interessantes. Menos francesa, menos certinha...

Fim do dia. Adeus, Angoulême.


Como o pessoal da feira de antiguidades do vão livre do MASP, em São Paulo, pouco antes do horário de fechamento, os expositores já começam a desmontar seus estandes e a encaixotar tudo.

Por volta das 17h, o festival começa a perdeu seu charme e dá a dica ao visitante: “Meu amigo, está na hora de voltar para casa”.

Foi o que fizemos. Rumamos a pé para a casa de nossos anfitriões franceses para também desmontar o nosso circo.

2 comentários:

Rafael H. Olivato disse...

Joe Sacco, pelo que parece, valeu o evento.

Não entendo o evento de divulgação dos prêmios. Eu vou até Angoulême pra ficar sabendo o resultado no dia seguinte, pela internet? Piada, né? Totalmente incompreensível.

Valeu, Douglas!
Cobertura muitissíssimo bom! Interessante demais!

Douglas disse...

Obrigado. Que bom que gostou!

Tem um errinho ou outro no texto mas nada que comprometa seu sentido. Ainda deixei de fora da cobertura o Espaço da Juventude, onde muitos artistas, uns não tão jovens assim, se encontram com editoras francesas para leitura de portfolio. Tem gente do mundo todo... No Flickr tem algumas fotos de lá!

Abraço.

Douglas