Questão de Nomenclatura
No Brasil, a Nona Arte é conhecida como histórias em quadrinhos, HQs, quadrinhos e até mesmo gibi (nome de um antigo personagem infanto-juvenil, que posteriormente ficou associado ao tamanho das revistas - o chamado formatinho); na Argentina se chama historieta; na França, bande dessinée; em Portugal, banda desenhada; na Espanha, tebeos ou cómic; na Itália, fumetti; e nos Estados Unidos (e a maior parte dos países de língua inglesa, como Canadá, Austrália e Reino Unido), comics.
Mas a palavra comics se refere ao conteúdo humorístico (nos primórdios dos quadrinhos) da obra, mais do que sua forma, diferentemente de termos como histórias em quadrinhos, banda desenhada, bande dessinée (entre outros), cuja nomenclatura se refere à forma da arte. E este é um dos problemas que andam sendo debatidos no mundo anglófilo dos quadrinhos.
Pode-se dizer que existem essencialmente três facções.
A primeira chama tudo de comics, sem se importar com qualquer outra distinção. Não interessa se a história é infantil ou adulta, de humor ou de super-herói. É comics, e pronto.
O segundo grupo adotou o termo, que atualmente é bastante polêmico, graphic novel (que pode ser traduzida literalmente como romance gráfico), para designar um material adulto, com pouca ou nenhuma relação com quadrinhos infanto-juvenis (como os publicados pela Disney, por exemplo).
Não vou entrar na discussão de quem criou a graphic novel, ou quem cunhou o termo. Só nos Estados unidos uns seis artistas diferentes, incluindo o Will Eisner, clamam por essa paternidade.
E voltamos à armadilha da nomenclatura.
Atualmente, qualquer coisa publicada nos Estados Unidos com mais de 32 páginas (e encadernada com lombada quadrada e capa cartonada), pode ser uma graphic novel. Uma minissérie banal de um super-herói qualquer encadernada num único volume é uma graphic novel, da mesma forma que uma obra como Fun Home.
As livrarias tradicionais (que durante anos não comercializaram quadrinhos) gostaram do termo e adotaram como parte integrante do vocabulário de marketing e vendas. As grandes editoras chegaram mesmo a emprestar o termo para dar nome a um formato (formato graphic novel, da Marvel e da DC, sem nenhuma relação com o uso atual do termo).
Qualquer grande livraria americana ou inglesa que se preze tem um setor de graphic novels. Peça por comics e você será enviado ao setor de livros infanto-juvenis, para uma prateleira (ou arara) com revistas lombada canoa, grampeadas, ou alguma edição especial cartonada, isso se a loja em questão possuir algum material dentro desta categoria.
Use o termo graphic novel, e será escoltado para o mundo das edições sofisticadas, em capa dura e com outras peculiaridades de impressão.
O terceiro grupo não sabe mais como se referir aos quadrinhos. Falta um substantivo adequado. É o grupo dos autores que estão cansados dos quadrinhos de super-heróis e da hegemonia de editoras como Marvel e DC, e também não querem ter seus trabalhos associados ao quadrinhos infanto-juvenil de humor antropomórfico, tipo Disney.
A maioria dos autores, estudiosos e críticos que pertence a este grupo prefere até usar o termo quadrinhos à pomposidade de graphic novel, que foi adotada e transformada pelo marketing das grandes editoras de livros e quadrinhos.
Mas, infelizmente para este grupo, quase toda sua produção é descrita como graphic novel. De Maus a Jimmy Corrigan, de Persópolis a Contrato com Deus, tudo está na mesma prateleira.
Para piorar a dor de cabeça desses autores, muitas vezes estas obras estão lado a lado com encadernados de super-heróis, que nem mesmo são as aventuras mais clássicas, como Watchmen, O Cavaleiro das Trevas, mas o último arco de histórias do Superman ou dos X-Men.
Parece que está surgindo uma onda de "esnobismo" dos chamados quadrinhos adultos (principalmente do que os americanos chamam de autores formalistas, como o Chris Ware) que pode ser vista pela seleção de livros nas prateleiras em obras de gente como Marjane Satrapi, Seth, Daniel Clowes, Adrian Tomine, Alison Bechdel, Art Spiegelman, Gene Luen Yang (de American Born Chinese), Harvey Pekar, Chris Ware, entre outros. E na escolha de histórias publicadas em antologias como Best American Comics (a edição de 2006 tem seleção de Harvey Pekar e a de 2007 de Chris Ware).
Uma atitude (que não é necessariamente dos autores, mas sim das livrarias e críticos) que parece um pouco com o esnobismo que existe em alguns setores da literatura e da pintura, por exemplo.
O curioso é que Art Spiegelman, um desenhista bastante associado às graphic novels e aos quadrinhos adultos (é o autor entre outras coisas, de Maus), aparentemente odeia o termo.
Outro caso famoso é o do Eddie Campbell (Do Inferno, etc.), que atualmente chama os quadrinhos de "that thing of ours" (algo como "aquela coisa nossa"), pois não quer estar ligado a nenhuma das outras nomenclaturas e abomina uma série de regras e padrões que estão sendo impostos pela mídia. Campbell além de ser um autor importante, é um pesquisador dos quadrinhos e ótimo teorista, com inúmeros debates e discussões sobre este assunto disponíveis online.
Não acho ruim que esses autores - gosto de muitos deles - estejam sendo aclamado e ganhando um espaço diferenciado, mas também não creio que transformar isso em esnobismo elitista irá ajuda os quadrinhos.
Entendo esta questão da nomenclatura como uma tentativa de mostrar às pessoas que os quadrinhos possuem mais a oferecer do que super-heróis e humor. Não acho que seja a solução do problema.
Na França, por exemplo, um exemplar de Persépolis, de Marjane Satrapi pode ser encontrado ao lado de um Bob Morane, Asterix, XIII, ou qualquer outra série sem o menor problema. É tudo quadrinhos.
Sem as histórias populares de grande interesse do público fica difícil existir um mercado forte no qual é possível publicar (com tiragens dignas) histórias mais profundas ou experimentais. A obra mais reflexiva (insira aqui o seu adjetivo preferido) sempre vai existir paralelamente ao trabalho de maior apelo popular. Em algumas ocasiões, as duas tendências se combinam.
Não interessa o tipo, a cor, o tamanho, o conteúdo, o nome... O que interessa é que o público leia os quadrinhos.
9 comentários:
Codespoti, vale lembrar que o termo mangá significa praticamente a mesma coisa que comics em japonês. E lá eles tem o gekigá, que é a versão "adulta".
É curioso que o problema seja tão global.
Sei que eles tem dois termos (e outros mais), só não tenho certeza se lá existe a mesma polêmica entre adultos e não-adultos ou outros problemas de nomenclatura.
Afinal, no Japão tudo tem um nome específico, mas não quer dizer que exista uma briga entre os segmentos diversos.
Aqui, pelo contrário, faltam nomenclatura e significados precisos.
Argumentos bem pertinentes. Excelente matéria.
Só para dar uma pequenina contribuição: A tradução de "graphic novel", não seria "novela gráfica", mas "romance gráfico", pois o termo em português equivalente "novel" é "romance", já que em inglês se usa "novella" para o tipo de texto que nós chamamos de "novela".
Sérgio, se você me permite, gostaria de estender esse assunto para a tradução de livros teóricos americanos sobre quadrinhos para o português.
No primeiro livro publicado no Brasil de scot mccloud ele fala sobre a origem do termo comics [exatamente o que vc coloca no post] e diferencia comic book de comic strip. Obviamente, a tradução diferenciou hqs de tiras, mas o termo hq é muito mais abrangente que o termo comics, ao meu ver. Seria o termo “história em quadrinhos” mais rico para descrever a arte? Particulamente não gosto de dizer que tiras não são histórias em quadrinhos, pois as tiras contam histórias desenhadas em quadrinhos. Ao contrário do inglês que poderia ser traduzido literalmente como "piada em tira" e "piada em livro".
O que acha?
Lucio Luiz,
Perfeita a sua colocação.
Um deslize da minha parte (e eu sou tradutor de quadrinhos), principalmente num texto sobre nomenclaturas e terminologia.
Thales,
Eu particularmente gosto mais de História em Quadrinhos, Banda desenhada, bande besinée, porque estes termos descrevem melhor os quadrinhos (ou a Nona Arte, se preferir).
Comics descreve apenas o conteúdo. Realmente acho que na língua portuguesa e no francês os termos usados são mais abrangentes.
A tira de jornal (ou qualquer que seja a forma de publicação, inclusive online), chamada em inglês de comic strip, é HQ.
A diferença está apenas no formato e na periodicidade. Interfere na leitura , na produção na maneira de narrar, mas não deixa de ser quadrinhos.
Hoje em dia o termo comic está muito ligado às revistas de super-heróis, e por estas razões muita gente quer se distânciar do termo.
Aliás este também é o problema da graphic novel, que surgiu como uma maneira de dar um nome mais apropriado à arte, e ambém para distinguir o conteúdo e hoje praticamente perdeu o significado.
Críticos, artistas e jornalistas usam o termo em inglês para qualquer coisa. O eddie campbell fez um post recentemente sobre este problema, explicando que o que irrita a ele é a perda do significado.
Estive em algumas livrarias em Londres, no último final de semana, e tive a oportunidade de ver isso de perto.
Numa delas eu perguntei ao atendente se ele tinha quadrinhos (comics), e ele parou pensou e me perguntou se eu me referia às revistas (comic books, pamphlets) ou se eu queria graphic novels. Os "Comic Books" estavam no setor infantil e as "Graphic Novels" num local de destaque na frente da loja junto aos lançamentos de livros.
O curioso é que junto com os comic books haviam encadernados volumosos só com histórias de guerras publicadas pelas editoras inglesas entre 1950-1980. Não era exatamente infantil.
Quanto ao final do seu texto, eu diria que não seriam piadas (em tiras ou em livros), mas humor em tiras ou revistas (e livros).
Quando os quadrinhos começaram a ser publicados de forma mais regular nos jornais e revistas, na metade do sécul0 19, as pessoas se referiam coloquialmente a estes cadernos dos jornais como comic ou funny pages (páginas de humor).
Acho que é um atentativa boba de elevar o status. É como chamar "massa com guisado" de "macarrão à bolonhesa".
Pô, filme é filme, e as categorias só definem o tipo de história.
Poderia haver uma discussão sobre animação, então, mas acho que é equivalente ao cinema: só muda a categoria das histórias, também.
Concordo com o Wagner. É HQ e pronto. agora se é de terror, infantil, guerra, sexo, ... é outra coisa.
Quanto a questão da perda do significado, acontece em qualquer área, só quem sabe sobre o assunto vai saber diferenciar, a mídia sempre trata todos os termos como iguais e normalmente usa o mais popular. de exemplo agora tem a palavra Hacker, que para quem sabe, não quer dizer quem faz "delitos eletrônicos" mas sim quem conhece muito sobre computação, agora a mídia usa o mais famoso para designar qualquer ladrão na internet (o certo seria Cracker). Acho o mesmo sobre o quadrinho, se eu mostrar um álbum do Sandman da Conrad para minha mão ela vai falar na hora que é gibi.
Bom, mas o que interessa mesmo é ler e apreciar né, o resto fica em segundo plano,
Abraços, Pedro Dalston.
PS. Mas que verificação de palavras dificilzinha q vcs colocaram hein!!!
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